Eram 3 da tarde e a termômetro em Girokastra, na Albânia, marcava 40 graus. Eu suava por todas as partes do meu corpo, após ter caminhado por cerca de 15 minutos, em íngremes ruas de pedra, carregando minhas duas mochilas. Quando o dono do hostel levantou a maior delas para leva-la ao quarto, olhou-me com um ar de surpresa e exclamou: “you are strong” (você é forte), naquele misto de elogio e espanto de quem descobre que mulheres podem ser fortes. Entrei no quarto com ar condicionado e queria jogar-me na cama, pois é o que gosto de fazer após traslados, mas naquele dia sentia muita fome e sabia que se encostasse na cama a preguiça entraria em ação, disputando a longa e recorrente batalha contra a fome. Decidi que naquela tarde a preguiça não ganharia, pois é sempre pior quando ela vence: saio mais tarde, não necessariamente descansada e já mau humorada de fome acabo fazendo péssimas escolhas alimentares e econômicas. Os poucos minutos que fiquei no quarto esfriaram um pouco o meu corpo que explodia de calor e mesmo diante do inferno que me esperava lá fora segui a estratégia de sair logo e com um destino definido. Para tanto pedi ao homem a indicação de um restaurante bom, barato e perto. Ele achou poder atender as duas primeiras restrições, mas não a última. Olhou-me com a expressão de que tudo estava à uma bela subida de distância, mas abriu um sorriso já oferecendo a solução: “se você quiser sair agora eu posso te dar uma carona na minha moto”. Dois minutos depois eu encarava a motinha que me levaria pelas ladeiras de pedra, numa garupa sem banco. Subi pensando o que frequentemente penso nessas situações, com um certo orgulho até: é impressionante a quantidade de vezes que coloco minha vida nas mãos de pessoas que nem conheço. Foi dada a partida na moto e ele saiu, enquanto eu escorregava, segurando com toda a força das minhas mãos já suadas, de calor e tensão. Mentalmente repetia a mim mesma que o homem sabia o que estava fazendo, afinal ele morava ali, mas na segunda ladeira a moto foi perdendo a força e meu pensamento foi substituído para algo menos otimista. Quando a moto parou por um segundo ele rapidamente colocou no chão um pé, calçado com chinelos, e numa agilidade admirável retomou o controle, trocou a marcha e a motoca continuou subindo, agora numa velocidade mais alta do que eu consideraria segura. Diante da cena confirmei: ele realmente sabia o que estava fazendo. Eu também, o de sempre: confiando no universo e colocando minha vida nas mãos de pessoas que eu nem conheço. Nesse caso talvez vida seja um exagero. Integridade física é um termo mais adequado. Eu no máximo sairia com alguns arranhões, o risco foi avaliado e aceito.
Quem vê de longe acredita que corro riscos desmedidos, que procuro a morte com as mãos, respondo que procuro a vida. Penso na morte todos os dias, de uma forma questionadora: se eu morresse agora, minha vida terá valido a pena? Se eu soubesse que morreria daqui uns meses, o que eu faria com o tempo que me resta? Desde que comecei a viajar as respostas tem sido sim, valeu a pena e eu faria exatamente o que estou fazendo agora - meses na estrada e meses no Brasil. Concluo que não tenho medo da morte, provavelmente porque vivo. E que a estrada não é assim tão mais perigosa. Tantos anos viajando sozinha não me desafiaram com perigos muito maiores do que os apresentados na minha vida normal, de casa-trabalho-social-viagens para ver a família-casa-trabalho. Todas as vezes que fiquei mais perto da morte (minha ou de pessoas próximas) eu estava em solo brasileiro, bem perto de casa. Enquanto eu me encanto e me pego curiosa pelo desconhecido, grande parte das pessoas se amedronta, sem perceber que assim morrem antes mesmo de terem seus corpos em um caixão.
Puxo na memória as situações mais perigosas desses últimos anos. Teve aquele homem que chutou meu banco no Vietnã, pois não queria que eu abaixasse a poltrona, apesar de ser meu direito abaixar a poltrona da van. Ele já me vendera uma passagem errada, falando que era um ônibus com cama, mas era uma van capenga e desconfortável, apenas com duas fileiras de bancos. Deitou-se atravessado utilizando os três bancos da segunda e última fileira. Sua cabeça ficou atrás da minha poltrona, que eu inclinara o máximo possível, o que não era nem 45 graus. Em determinado momento, ele começou a gritar palavras incompreensíveis palavras vietnamitas e pelas mímicas entendi que queria o banco menos inclinado, pro alecrim dourado ficar mais confortável. Subi pouco, porque não sabia brigar naquela língua. Na parada inclinei novamente o banco - homem folgado me enerva demais - quando o cara voltou e foi deitar-se esmurrou o banco, não a mim.
Ao anunciar que iria pra Índia todos a minha volta espantavam-se. Ouvir que eu iria pra Índia sozinha era algo que assustava chineses e chinesas mais que assombração, por isso passei a pesquisar os riscos, considerando que eu pudesse estar sendo muito ingênua. Não encontrei nada diferente dos riscos que eu já conhecia. Atravessei o norte do país sozinha e em segurança, mas toda vez que passava em frente a um beco escuro pensava o que faria se alguém me puxasse para ali. Mesmo na Jordânia, onde me senti totalmente desconfortável por ser mulher, não achei que minha integridade física corria riscos. No Equador percebi que bastava um deslize pro ônibus cair daquele despenhadeiro sinuoso por onde circulávamos e na Indonésia o barco em que dormia balançava tanto no escuro da noite que julguei ser possível um naufrágio. Preocupa-me pensar em quanto demorariam para achar meu corpo, como família e amigas receberiam a notícia e as dificuldades burocráticas para trazê-lo de volta. Já falei para o deixarem por lá caso algo aconteça.
Mas nenhum desses momentos foi mais perigoso que o mar de Camboriú ou meu encontro com um rebanho de bois que descia à galope a estrada da fazenda. Eu tinha 14 anos quando, no melhor estilo mineiros vão à praia, minha turma de escola chegou ao litoral catarinense. Adolescentes empolgados com a sua primeira viagem em grupo, cheios de animação, hormônios e pouco conhecimento da vida. Cenário responsável pela minha demora em perceber que o mar puxava muito e eu perdera o controle de onde estava indo. Já no fundo, tentava voltar para a areia e não conseguia. Com medo e cansada, vi uma onda grande formando-se e pensei que era a hora. Eu ia com ela, para que não precisasse virar manchete dos jornais. Soltei meu corpo e deixei a imensa onda me levar. Não importava a força da onda, o caldo e ralados, o importante era chegar na praia. Pisei na areia para descobrir que outros do grupo tiveram a mesma experiência e desde então sou mais atenta quanto ao mar.
No episódio da fazenda eu era ainda mais jovem. Nos anos 90 minha família tinha o hábito de realizar rodeios na fazenda do meu avô. Um tio possuía alguns bois “puladores” e os amigos iam participar da competição amadora. Entediada com aquele programa decidi andar à cavalo e fui busca-lo no curral que ficava na base da estrada de terra que chegava até o local do evento. Montei num pônei, provavelmente o único já com sela e quando começamos a subir a estrada ouvi o forte barulho de pisadas galopantes. Olhei para entender que o rodeio acabara e os bois desciam em alta velocidade. Eu e Pirex estávamos bem no caminho e aquele rebanho veloz iria nos atropelar. Do alto dos meus 10, 11 anos, não tinha a menor ideia do que fazer, só a certeza de que descer do pônei não estava dentre as boas alternativas. Por intuição animal pensante deixei que o outro animal decidisse o que fazer e soltei as rédeas. Pirex virou-se, nos deixando de costas para o rebanho e deu apenas alguns passos, aproximando-se da porteira fechada. Com o coração acelerado, ouvia o trote dos bois cada vez mais próximo e esperava que eles passassem, quando Pirex pulou alto. Eu segurava com tanta força o arreio que mesmo diante do impacto não caí. Durante aqueles segundos no ar eu já imaginava o que acontecera e olhei de relance, pra confirmar que um boi dera uma cabeçada na anca de Pirex. O pônei também não caiu, o boi foi embora, seguindo seus companheiros e nos afastando do perigo. Vinte anos depois perdi uma priminha de sete anos que caiu de um cavalo sem encontrar bois bravos. Uma experiência corriqueira tirou a vida de uma criança, enquanto outra sobreviveu a um encontro tão perigoso. A vida não tem respostas, muito menos caminhos seguros contra a morte.
É uma ilusão achar que há segurança enquanto viver já é correr riscos. Não morri em anos de estrada, enquanto pessoas que deixaram de realizar sonhos perderam a vida na “segurança” de casa. Não morri, mas podendo morrer a qualquer momento ainda escolho ir e se a morte acontecer na estrada, não questionem minhas escolhas. Ano passado, por volta dessa mesma época, uma andarilha se foi. Era Julieta, uma palhaça de profissão, nascida na Venezuela, radicada no Brasil, que percorria o Brasil de bicicleta, com o sonho de chegar até sua terra natal. Ela estava perto, bem perto. Cinco anos depois de ter deixado São Paulo ela desapareceu em Presidente Figueiredo, na Amazônia, a cerca de 850km da fronteira com a Venezuela. Ouvi sobre Julieta pela primeira vez por causa de seu desaparecimento. Uma mulher que acompanho no Instagram, letrada na teoria feminista e aparentemente na vida, moradora da cidade grande de São Paulo, falava na sua conta sobre a irresponsabilidade de Julieta estar sozinha na estrada, que mulheres acreditam na falácia de que são livres, mas que não somos, que esse tipo de atitude nos faz correr riscos, riscos desnecessários (a seu ver). Concluiu dizendo que se fosse amiga de Julieta teria escondido sua bicicleta.
Esconder meu passaporte é algo que já deve ter passado pela cabeça de muita gente ao meu redor. Respondi o post dizendo que aquela fala mexia comigo, que eu também viajava só, pelo visto com menos planejamento e acompanhamento que Julieta (cuja rede de amigas seguia seus passos e a acompanhava quase em tempo real), disse que eu não era ingênua, que sabia dos riscos que corria, mas que ficar seria deixar de viver, que nos trancar não é mais seguro, os perigos estão por todas os lados. Cortar as asas de uma passarinha não a protege, a mata de outras forma. Concluí pedindo: não esconda minha bicicleta, muito menos meu passaporte. Todos vamos morrer, mas primeiro a gente vive.*
*adaptação da frase falada pela personagem Ygritte, uma personagem de Game of Thrones, uma mulher valente e com sede de vida, “if we die, we die, but first we live” (se morrermos, morremos, mas antes viveremos).
Mais um pouco de inspiração para viver
No livro Existo, Existo, Existo a autora Maggie O’Farrell conta a história de sua vida a partir de experiências de quase morte. O primeiro capítulo é forte e triste, ao relatar seu encontro com um abusador enquanto fazia uma trilha sozinha. Ela seguiu vivendo, eu também, outra garota não. Acidentes parecem ser menos difíceis de aceitar do que a maldade humana. Não parei de fazer trilha sozinha, mas depois dessa história deixei de fazer amizades no caminho.
Tamara Klink navega sozinha e é uma grande inspiração. Ela também recebe conselhos que buscam prendê-la em gavetas ou esconder seu barco, mas não os segue.
Faz mesmo pensar á sorte que temos de viver ...