Muito já foi falado sobre as tragédias dos últimos dias, principalmente sobre a queda da Juliana Marins, enquanto fazia uma trilha no vulcão Rinjani, na Indonésia, e após quatro dias foi resgata sem vida. Devido à semelhança em nosso modo de viver passei a semana recebendo mensagens. Em tons de reprovação, aviso, crítica, admiração ou consolo, os textos chegavam. As pessoas estavam certas, o caso me abalou muito. Quando uma viajante solo morre, todas morremos um pouquinho.
Sou uma mulher que viaja sozinha, se interessa por novas culturas e por estar perto da natureza, o que significa subir montanhas, nadar em rios, explorar florestas e vulcões (na maioria das vezes inativos). Por mais que a maioria das coisas que faço serem estatisticamente menos perigosas do que atravessar a rua, ou como bem lembrou um amigo, morrer de dengue no Brasil, são elas que assustam as pessoas ao meu redor.
A Capadócia, na Turquia, é o lugar mais famosos para passeios de balão (pode perguntar pro chat GPT) e em 2013 cheguei lá com essa intenção. Alguns meses antes da minha viagem brasileiros feriram-se em um balão que caiu ali. Entendi como uma fatalidade. Por dia, entre 100 e 150 balões levantam voo, cada um carregando cerca de 15 pessoas e eu só ouvira falar daquele acidente. A estatística estava a favor da vida, da experiência. Além disso, durante dois dias em que estive lá acordei de madrugada, na expectativa de voar e não voamos, pois as condições climáticas não permitiam. Apesar da frustração entendi que as medidas de segurança estavam sendo aplicadas e me senti ainda mais segura. Consegui voar na minha terceira e última noite, após uma manobra e exceção da empresa, que nos levou diretamente para o aeroporto após o fim da experiência. Além da barriga gelada, o sorriso no rosto, revezando com a boca aberta em deslumbramento, diante de mim havia centenas de balões coloridos, sobre uma relevo diferente de tudo o que eu já vira e não, não me bastaria vê-lo em fotografias.
Em 2023 fiz um roteiro pela América Central, região do planeta que se encontra no chamado cinturão do fogo e conta com centenas de vulcões. As pessoas do meu instagram ficaram enlouquecidas. Minha mãe diz que andava pela rua e pessoas da nossa cidade olhavam para ela com pena, perguntando se ela era a mulher cuja filha caminhava por vulcões. (Acho que tem um certo exagero materno aí, mas estou reproduzindo a história). Enquanto isso há milhares de pessoas morando nesses lugares, aos pés dos vulcões, o que não é naturalizado para nós, brasileiros, que vivemos distantes do cinturão de fogo. Essas pessoas não pensam em sair de onde nasceram por estarem perto de vulcões.

Em 2024 meu planejamento inicial era pegar a Transiberiana, a ferrovia que corta a Rússia de leste a oeste, partindo de Moscou. Tinha esperanças que até minha partida o conflito com Ucrânia já teria terminado, mas não. Pela proximidade com o conflito não senti segurança para seguir o plano e com pesar eliminei a Rússia do meu roteiro. Meses depois percebi que o oeste daquele imenso país era bem próximo da Córeia do Sul, onde eu estaria em pouco tempo. Encontrei um barco que fazia o trajeto e achei que visitar aquele trecho não seria tão arriscado. Desembarquei em Vladivostok por mar e a atendente da imigração russa, acostumada aos passaportes coreanos e japoneses precisou de um manual para entender o que fazer com o meu passaporte brasileiro. Ao descobrir, o carimbou com um sorriso e dicas sobre o país. Eu adentrava uma nação em guerra, medindo riscos e fazendo concessões. Meu maior receio não era minha integridade física, mas sim como um amigo ucraniano encararia a minha decisão de visitar a Rússia.
O que aconteceu com Juliana Marins, que caiu de uma trilha na Indonésia foi, primeiramente, um acidente, em segundo lugar um descaso da agência de viagens e do guia que a acompanhava e por fim, um tremendo despreparo do parque e das instituições do país para resgatá-la. Me arde por dentro pensar que apesar do tipo de tecnologia existente não foram capazes de enviar mantimentos e proteção contra o frio para ela, que não possuiam corda do tamanho suficiente para acessá-la, nem pessoas treinadas nesse tipo de resgate de prontidão. É como ir ao Rio de Janeiro e não ter salva-vidas na praia. Espero que o caso seja uma lição para a mudança.
Dentre todas as mudanças que me aconteceram durante esses anos na estrada, uma é gritante: viajar me tornou mais tolerante. Minha experiência grita todos os dias no pé do meu ouvido: "só sei que nada sei”, mesmo que eu saiba muito mais agora. É por essa tolerância que não tentarei te convencer a seguir meus passos, fazer o que faço, viajar o mundo, sair sozinha por aí, não ficar em casa nos feriados, provar do meu antídoto: o movimento. Posso até escorregar e olhar torto quando vejo pessoas apegadas a suas rotinas, mas logo sou lembrada - por mim mesma - que há muitos jeitos de viver a vida. É meu conhecimento do mundo que me tráz essa lembrança. É por ele que aceito suas escolhas, sem tentar te convencer a viajar mais, não ter filhos ou não buscar um relacionamento. Ver o mundo mata minha sede de vida. Eu tenho sede e entendo que não nos saciamos com a mesma água.
Mas não entendo quem procura preservar a vida a qualquer custo, quem tem tanto medo que protege-se a ponto de não viver. No livro Sobre a Brevidade da vida, que no geral eu achei chato e machista (também pudera, Seneca o escreveu em 49 a.C.) há passagens (muitas) possíveis de aproveitamento e alguma delas dizem: “Não é que tenhamos pouco tempo para viver, mas sim que desperdiçamos muito dele.” e “A vida é como uma peça de teatro: não importa quão longa ela seja, mas sim quão bem ela é representada". O filósofo estoico dizia que a vida não é breve, nós temos essa impressão por não aproveitá-la plenamente, sempre deixando para fazer coisas no futudo, ou preocupados com o passado. Não vivemos o presente, nem a vida que planejamos e gostaríamos para nós mesmas, mas sim a imposta pela sociedade ou a que dá. A vida é breve quando não fizemos o que gostaríamos e aí não importa se a morte chegou aos 26, 40, 82 ou 100. Ela terá sido pequena. (Esse final é meu, não do Seneca).
Eu não sei mais como explicar que pouco me interessa uma vida sem riscos ou provar a quem se preocupa ou me critica que os riscos também existem em uma vida rotineira. Por isso meu texto não é sobre isso, eu já desisti dessa função. Meu texto é sobre tolerância, sobre aceitar formas de viver diferentes da sua, sobre expandir a visão de mundo, mesmo que você prefira (ou só possa) fazê-lo do sofá da sua casa. Não critique quem escolheu uma vida diferente. Eu sinto muito pelas pessoas que me amam e não conseguem entender as minhas escolhas, sentem medo por mim e por elas, mas tirar minhas aventuras é como amar muito uma passarinha e prendê-la na gaiola.
Eu não morrerei em uma mesa de lipo, mas posso morrer fazendo uma trilha. Não morrerei dando a luz a uma criança, mas posso morrer nadando em um rio. Espero não morrer em acidente de moto, ao mesmo tempo não deixarei de subir em uma. Talvez eu até morra atravessando a rua, mas seria uma surpresa. Velhinha, contando histórias das minhas viagens, morando em uma comunidade com minhas amigas, é o meu novo sonho de morte, de vida. É claro que tenho pena de morrer, como a avó de Saramago aos seus 90 anos ainda dizia: “o mundo é tão bonito que dá tanta pena de morrer", porém tenho mais pena de não viver. Prometo redobrar meus cuidados, mas uma coisa é certa: quando a morte chegar ela me encontrará vivendo. Do meu jeito.
Seus textos são uma terapia…ou várias delas rs
Que bonito viver com você!